O estudo científico dos comportamentos suicidários é inquestionavelmente nos dias de hoje, uma realidade observável através do conjunto considerável de trabalhos de investigação, publicações de especialidade, realizações científicas temáticas e do interesse que suscita na prática clínica dada a sua complexidade e natureza do seu objecto de estudo.

Se não temos dúvidas sobre a importância da emergência da suicidologia nas últimas décadas, devemos contudo reflectir sobre as verdadeiras razões que mais contribuíram para o seu reconhecimento enquanto área específica de estudo e prevenção do suicídio bem como sobre a importância da utilização dos conceitos operacionais mais comuns.
 
O que sabemos realmente sobre os comportamentos suicidários? Que estratégias comuns têm sido pensadas para a avaliação do risco de suicídio? O campo vasto da suicidologia abrange naturalmente os suicídios efectivos e as tentativas de suicídio, mas também os para-suicídios, as ideias de suicídio, os gestos suicidas e as auto-mutilações.
 
É um dado adquirido que permite uma visão mais ampla e correcta de toda a problemática do suicídio mas que pode ter efeitos indesejáveis se não houver o cuidado de separar criteriosamente alguns destes conceitos.
 
As dificuldades são grandes no que diz respeito a este desiderato e traduzem-se muitas vezes na prática clínica quando se pretende por exemplo decidir por um diagnóstico de um comportamento que se insira numa verdadeira tentativa de suicídio ou num para-suicídio.
 
Diekstra em 1993 define o para-suicídio como um acto não fatal pelo qual o indivíduo empreende deliberadamente um comportamento não habitual que sem intervenção de outro causará lesões auto-infligidas; ou que ingere deliberadamente uma substância em quantidade superior à prescrita ou à dosagem geralmente admitida, e que tem por objectivo conseguir, via das consequências físicas reais ou supostas, as mudanças que o sujeito deseja.
 
De facto, o que surge de verdadeiramente novo neste conceito é a ausência de referência à intencionalidade enquanto característica voluntária, consciente, deliberada e premeditada de um acto, que supõe uma referência à liberdade de escolha (Pawlac, 1995), permitindo desta forma diferenciá-lo das tentativas de suicídio, em que a intenção da morte está presente.
 
Temos assim, que a noção exacta dos conceitos se revela aqui essencial e com reflexos importantes tanto na metodologia dos trabalhos desenvolvidos bem como nos programas de prevenção que muitas vezes têm como ponto de partida a malha entrelaçada dos conceitos.
 
Sendo certo que este objectivo é essencial, fica-nos contudo a ideia da existência de um enorme conjunto de situações em que a realidade se afasta destes pressupostos e nos coloca novos desafios conceptuais sobre a própria intencionalidade da morte no contexto dos comportamentos suicidários.
 
Isso mesmo se verifica na prática clínica e levanta questões essenciais relativas à avaliação do risco de suicídio e ao estabelecimento dos programas de acompanhamento e tratamento em ambulatório em que não devem ser esquecidas outras componentes como a predisposição ao comportamento suicida, os factores de vulnerabilidade e precipitantes, o conteúdo do pensamento suicida, a impulsividade e o comportamento suicida prévio.
 
A planificação de estratégias correctas da avaliação do risco de suicídio é uma tarefa de importância crítica para os clínicos e deve passar obrigatoriamente por um reconhecimento adequado da intencionalidade suicida.
 
Aliás, o uso de modelos de avaliação com princípios comuns e conceptualmente consistentes com os aspectos teóricos mais recentes é uma prática desejável, devendo no entanto ter em consideração as diferenças culturais e sociais.
 
Para além disso a avaliação da suicidalidade, sendo uma componente de uma avaliação global mais vasta, deve ser perspectivada como um primeiro passo do processo de tratamento.
 
Enfatizar este aspecto revela-se determinante pois muitas das decisões começam justamente nesse momento, como por exemplo o estabelecimento do nível do risco, a necessidade da sua monitorização, o tratamento em meio ambulatório ou internamento, o equacionamento de um plano de resposta à crise e o estabelecimento de intervenções específicas.
 
Negligenciar este facto dificultará necessariamente a estratégia de tratamento e poderá ter consequências imprevisíveis em todo o processo de acompanhamento.
 
É claro que nos comportamentos suicidários não existem dois casos sobreponíveis mesmo apesar das aparentes semelhanças entre eles. Deste modo a realidade da área da suicidologia reveste-se de grande complexidade pelo que a sua dimensão envolve sempre a interdependência de vários factores, nomeadamente de ordem biológica, psicológica e social.
 
A medida em que cada um destes factores é mais ou menos determinante para os comportamentos suicidários continua a ser motivo de discussão. Emile Durkheim (1897) estabeleceu a tipologia do suicídio assente numa matriz essencialmente social “ o suicídio varia na razão inversa do grau de integração do indivíduo nos grupos sociais de que faz parte”.
 
Os seus estudos transcendem em larga medida a dimensão individual do suicídio conferindo-lhe uma visão essencialmente “externa” assente em factos sociais.
 
O actual momento do estado da arte no campo dos comportamentos suicidários e a evidência de um número crescente de para-suicídios/tentativas de suicídio com que nos confrontamos diariamente na nossa pratica clínica e que representarão porventura apenas uma pequena parte do todo, exige de todos nós uma reflexão profunda sobre as suas verdadeiras razões e que nos questionemos sobre as dimensões psicológicas e sociais que estarão por detrás da emergência desta nova realidade.
 

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